terça-feira, 27 de setembro de 2016

Que mito você está vivendo? - Carl Jung


Da apropriação e reiteração de discursos iorubas: uma leitura sígnica

Os mitos dos orixás apontam para uma longa memória - mesmo que construída dialeticamente, e reportam seus adeptos para tempos longínquos em que os deuses habitavam a terra. Na dinâmica dos terreiros de candomblé, os cultuadores dos orixás, o povo do santo, entende esses textos em seu aspecto religioso, o que lhes confere instrumento que transcende o material, o concreto, o científico, tornando os mitos, nesta perspectiva, instrumento que comunica deuses e homem, terra (àiyé) e céu espiritual (órun).

Os textos mitológicos aos quais fazemos referência são os chamados ìtàn àtowódówó , que nos contam sobre os mitos cosmogônicos, a epopéia dos deuses, sua relação com o mundo e com a nossa humanidade. De uma riqueza ímpar, esses textos aprofundam o entendimento de quem somos, do que fazemos, ao discutir as questões da existência humana e suas eternas dúvidas. São ao mesmo tempo influência e influenciados pelos rituais, que os reiteram, cada vez que um iniciado lança água à terra, umedecendo-a, cada vez que uma oferenda é dedicada aos orixás, solicitando-lhes o axé; ou quando os babalaôs, “guardiões do segredo”, se debruçam sobre o complexo jogo oracular de Ifá (Orumilá) para fazer suas adivinhações.

Para o povo do santo, os mitos são aceitos como “absolutamente verdadeiros” , pois deles se apropriam não como fatos, mas como metáforas, não em seu valor referencial, científico, mas em seu teor metafísico, promovendo um relacionamento com as energias o mais próximo, o mais visceral possível, que, neste sentido, con-fundem mito e ritual. Por isso,

Quando o oráculo do Ifá é lançado, o que consiste em jogar dezesseis conchas de búzio no chão, como se fossem dados, se a pessoa receber o sinal chamado de Ossá-Ogumda , é essa história que será contada pelo babalaô. A pessoa afligida poderia assim receber o diagnóstico de que sofre de um problema de impotência sexual ou incapacidade, provável mas não necessariamente sexual, e as ervas medicinais prescritas são chamadas de “remédios de luta”, consistindo principalmente de uma planta conhecida como “folha de búfalo”, apreciada por seus “chifres grandes”. Porém, o propósito fundamental desse procedimento é desenvolver um relacionamento com a Deusa [Oyá-Iansã].

Todavia, o debate em torno dos mitos tem sido legado a um plano de descaso: são tratados como “estorinhas” que têm valor pouco significativo em nossa cultura: ocidental, eurocêntrica, cristã, que privilegia outras formas de conhecer o mundo: telescópio, computador, satélite, microscópio, e o intelecto do homem moderno. Aliás, é visível a política de apagamento dos mitos africanos em comparação com a utilização canônica que as instituições - escolas, universidades - tem legado aos mitos gregos, romanos, egípcios.

Não devemos esquecer que desde os séculos XV e XVI, no imaginário coletivo já estava sedimentada uma mitologia européia de deificação e de demonismos: “os deuses tinham pele branca, os diabos, pele negra, e era dever dos deuses subjugar os diabos.” Mais ainda, discutir mitologia africana é remontar a história de um povo massacrado, vilipendiado, que sofreu diversas pilhagens ao longo de sua história. De modo objetivo: (i) o tráfico negreiro e a escravidão dos africanos nas Américas; (ii) a colonização dos territórios africanos; (iii) o recrutamento de pessoas para o desenvolvimento militar e científico dos países do Ocidente, que teve seu início nas décadas finais do século XX.

Neste contexto, é a influência dos negros iorubás (nagôs), principalmente pós-escravidão, que vai difundir no Brasil seu modo muito particular de ver o mundo, através de seus mitos e rituais de adoração dos deuses. O professor Reginaldo Prandi diversas vezes declarou a força dos iorubás, ressaltando as atividades de casas de santo tradicionais na Bahia: a Casa Branca do Engenho Velho, o candomblé de Alaqueto, o Axé Opô Afonjá e o Gantois.

Além disso, os últimos anos assistiram a uma preocupação sistemática em resgatar os textos mitológicos, com a vinda de babalaôs nigerianos trazidos ao Brasil por instituições, como o Centro de Estudos Africanos da Universidade do Estado de São Paulo, onde ministram cursos sobre mitologia, cultura, língua e ritos iniciáticos. , além do chamado processo de reafricanização, em que os sacerdotes peregrinam à África em busca de “uma literatura sagrada contendo os poemas oraculares de Ifá”.

Pierre Verger se apóia na pesquisa de Gisèle Cossard para discutir arquétipos, segundo o que, os iniciados, geralmente, possuem traços comuns a seu orixá, tanto no biótipo, quanto em características psicológicas. O corpo do filho de santo, bem como suas ações em sociedade parecem ser espelho do orixá, tal qual seus mitos apresentam. Neste sentido, se Xangô é vigoroso, forte e elegante, Oxum possui feminilidade extrema e elegância, Iansã apresenta-se com força, energia e sensualidade, Oxossi com vivacidade e independência, Ogum com extrema força, rapidez e não muito bom humor, isso será reproduzido no arquétipo.

A pesquisadora Betty Mindlin citando Mircea Eliade (1907-86) diz que o mito é “um fenômeno religioso”, como tentativa de o homem retornar ao ato original da criação.
Acreditam os cultuadores de orixás que, cada vez que os mitos são acionados por meio de seus rituais, produz-se a ligação entre o sagrado e o profano, fazendo com que o homem escape do tempo profano, adquirindo a possibilidade de existir em um outro espaço, o Tempo Primordial, “tempo forte, prodigioso, sagrado em que algo de novo, significativo e forte, ocorreu pela primeira vez. ”

E como teriam surgido os mitos? Ford opta pela teoria da “difusão e da origem simultânea”; ou seja, os mitos têm uma origem simultânea em diversas culturas porque são elementos essenciais do homem e estão presentes em toda parte. Além disso, é bastante complexo precisar suas raízes, haja vista que, a mitologia africana surgiu oralmente, como todas as mitologias; e seu conhecimento é transmitido oralmente, o que lhe confere, segundo Verger, caráter de portadora de axé:

As palavras, para que possam agir, precisam ser pronunciadas. O conhecimento transmitido oralmente tem o valor de uma iniciação pelo verbo atuante, uma iniciação que não está no nível mental da compreensão, porém na dinâmica do comportamento.
Outras características dos mitos é que não são datados, não se confundem com um discurso histórico, não produzem um fio narrativo, e não se preocupam com linearidade ou “coerência”. 
Eles se apresentam como uma necessidade de explicação da vida, dos fatos, das ações de um povo. Deste modo, o povo do santo se utiliza de um grande repertório de mitos que versam sobre um conjunto de fatos acontecidos no passado, com o intuito de iluminar a vida no tempo presente.

Os mitos dos orixás: a voz que (in)surge dos terreiros e/ou sobre como é saboroso o saber dos mitos em Verger.

Pierre Fatumbi Verger (1902-1996), fotógrafo, etnólogo e babalaô do culto aos orixás, teve como objeto de interesse e universo de trabalho a cultura afro-brasileira, especialmente o candomblé da Bahia. Dedicado a Orumilá, o deus da adivinhação, iniciou-se no culto a Ifá, o oráculo iorubano, o que lhe valeu o nome Fatumbi, ou seja, “renascido de Ifá”.
Em seu Orixás: deuses iorubás na África e no novo mundo, apresenta uma série de mitos coletados na África e no Brasil sobre os deuses iorubás. Esses textos encontram respaldo nos terreiros e são recontados, com alterações em um ou outro ponto, com a manipulação e ressignificação de certas passagens, mas, sobremodo, se fazem sentir nos rituais que são produzidos nos terreiros de candomblé por todo o Brasil.
Fatumbi chama a atenção para as diferenças que os textos apresentam quando contados e recontados ao longo do tempo:

se algumas destas variações são o resultado de esquecimentos ou do acréscimo de elementos novos, não podemos afirmar, entretanto, que os aspectos de um mito, fixados há um século, sejam mais próximos de sua concepção original que os levantados atualmente.
Em suma, trabalharemos neste artigo com três mitos referentes a Exu, conforme apresentados por Verger. Tal escolha se justifica, haja vista que este orixá, o primogênito do Universo, é o responsável por toda a dinâmica dos rituais, sem o qual, nada acontece. Efetivamente, tudo nos rituais depende de Exu; de seu alto poder mágico e cosmogônico.
Assim, apresentamos os mitos e os modos como são apropriados pelos terreiros, para que conversem entre si, dialeticamente, proporcionando-nos ricos significados.
Cremos que, mesmo que não conheçam os mitos em detalhes, mesmo que inconscientemente, os terreiros expressam o posto nos mitos e remontam sua gênese. Ruy Póvoas, professor de literatura e zelador no culto aos orixás, com casa de axé em Ilhéus, me dá condições de defesa:

Num terreiro de candomblé, jamais se atribuirá a uma pessoa cabeça de Oxum a tarefa de remover o corpo morto de um animal em decomposição ou qualquer atividade que implique lidar com cheiros nauseabundos ou que promovam rejeição. Oxum é moça rica, rainha do brilho, do perfume e assim são também os seus filhos. Desrespeitar o humano é também desrespeitar o orixá, pois essas coisas não se separam.

Oxum é mulher graciosa, símbolo do feminino e da beleza, rainha excelsa, delicada. Para ela seria agressão lidar com elementos em putrefação. De mesma sorte, jamais se pedirá a um filho de Oxalá que manipule o dendê ou o sal. Esses elementos fomentam a ira do orixá, porque são símbolos que vão de encontro ao axé particular de Oxalá, deus do branco, da paz, da alvura, orixá relacionado à criação, fomentando nele e em seu filho atitudes incomensuráveis. Ford (1999:211) destaca que Obatalá, outro nome para Oxalá, é o “Rei das Vestes Brancas, em parte porque o branco simboliza o líquido seminal, o poder criador masculino”.
Em contrário, Ogum, Xangô, Oyá e Exu são energias que se apropriam em demasia do axé do “sangue vermelho”, inclusive, dele se alimentando em grandes quantidades, como o epô, azeite de dendê, o osùn, pó vermelho, mel; bem como do axé do “sangue preto”: carvão, ferro, o sumo escuro de certos animais; o ilú, índigo, extraído de diferentes tipos de árvores.

Não à toa, termos nos mitos de Exu a manipulação do axé do vermelho e do branco, o qual, conta como ele semeou discórdia entre dois amigos que estavam trabalhando em campos vizinhos. Ele colocou um boné vermelho de um lado e branco de outro e passou ao longo de um caminho que separava os dois campos. Ao fim de alguns instantes, um dos amigos fez alusão a um homem de boné vermelho; o outro retrucou que o boné era branco e o primeiro voltou a insistir mantendo a sua informação; o segundo permaneceu firme na retificação. Como ambos eram de boa fé, apegavam-se a seus pontos de vista submetendo-os com ardor e, logo depois, com cólera. Acabaram lutando corpo a corpo e mataram-se um ao outro.

Exu é indicado em diversos mitos como o senhor dos caminhos, aquele a quem se deve oferecer salvas muito antes do que a qualquer outra energia para que nada de ruim aconteça, para que os amigos não se tornem inimigos e a colheita, da qual, Exu, conosco é participante ativo, pois está em todo e qualquer ritual, renda frutos benéficos.
O texto chama a atenção para o fato de que os amigos eram tão amigos e seu laço tão próximo que seus terrenos eram “vizinhos”. Ou seja, Exu é aquele que pode desfazer o que já está estruturado, dado como certo, inviolável. Exu é o que destrói o inexorável. O termo “passou ao longo de um caminho” é empregado, como índice de ser Exu o que transita tranquilamente entre os espaços, qualquer espaço. Lembremos que é ele quem fomenta a comunicação entre o àiyé e o órun: o duplo mítico, assim como, é duplo - formação de par - o sistema que traz harmonia. Viviam em harmonia os dois amigos, mas, com o acréscimo do terceiro - Exu -, esta harmonia se desfaz. Lembremos que o número três é por excelência a força de Exu, o morador do oritá, encruzilhada de três pontas, e o ímpar é, por sua vez, aquele que descontextualiza, traz o caos, desarmoniza. É por meio de sua presença e do seu boné de duas cores, signo do vermelho e do branco que a discordância se instala, tornando-se uma afronta, que leva a discussão, à cólera, à luta corporal e à morte um do outro. Não há vitorioso que não seja Exu. Percebamos também que nenhuma razão há para que Exu apronte esta dissidência. Exu é aquele que faz o que quer, como quer, com quem quiser. Faz o bem e faz o mal. Exu é aquele “que joga nos dois times sem constrangimento: Asòtuún se òsì láì ni ítijú” . Exu pertence tanto à direita - orixás -, quanto à esquerda - ébora -, daí seu boné branco e vermelho. 

Exu transita nos dois hemisférios da cabaça da criação, veiculando seu poder entre o grupo dos orixás - os òrìsà-funfun, Obatalá, Òsalufón, Òsaògiyán, Òrisà-oko, Olúwo-fin, Olúorogbo, Orisà Eteko, que se apresentam sob a forma do poder genitor masculino e do “sangue branco” -, e os éboras - os omo-òrìsà, Ogum, Xangô, Ossain, Iansã, etc, constituintes do grupo dos duzentos irúnmalè da esquerda, a metade inferior da cabaça da criação, cujo poder genitor é feminino. 

Exu é orixá de extremo poder, de alta magia e complexa manipulação, que veicula o axé, intercomunicando o sistema espiritual, sem o qual, qualquer manifestação ficaria impedida:
A função de Exu consiste em solucionar, resolver todos os ‘trabalhos’, encontrar os caminhos apropriados, abri-los ou fechá-los e, principalmente fornecer sua ajuda e poder a fim de mobilizar e desenvolver tanto a existência de cada indivíduo como as tarefas específicas atribuídas e delegadas a cada uma das entidades sobrenaturais.

Não à toa, é comum nos rituais, saudar Exu antes de qualquer atividade, “conversando com ele, colocando-lhe oferendas, afinal ele é o Síwájú, “o primeiro a ser cultuado”. A ele, no mínimo, uma quartinha - pote pequeno de barro - com água deve ser colocada e esta água não deve secar nunca. E a terra deve ser saudada, umedecida, lançando-lhe três punhados d’água, antes de qualquer ebó, a fim de acalmar as forças de Exu.

Em outro texto, menor, mas não menos indicativo do poder de Exu, outras características deste orixá podem ser abordadas:

Uma mulher se encontra no mercado vendendo seus produtos. Exu põe fogo na sua casa, ela corre para lá abandonando seu negócio. A mulher chega tarde, a casa está queimada, e, durante esse tempo, um ladrão levou suas mercadorias.
Aqui, ele é retratado em seu poder visceral de alta magia, de controle do fogo. Nada do que a mulher tenta fazer dá certo. Ela corre para casa e chega tarde. Percebamos que o vocábulo “tarde”, nos lança para uma idéia de passagem de tempo, faz crer que Exu controla o tempo, e o faz passar a seu bel prazer. Contra a ira de Exu, não há o que fazer. Enquanto a mulher tenta salvar sua casa, ele faz com que roubem suas mercadorias: a mulher está sem trabalho e sem casa. 

Outro aspecto que salta é a colocação no texto do vocábulo “mercado”. Sabe-se que ela tem uma importância semântica fundamental para os iorubás, pois indica um lugar símbolo do jogo financeiro, do mecanismo de troca, de compra e venda. O mercado é a morada da riqueza. Não é espanto, ter se reproduzido nos rituais de axé por conta dos mitos, um ebó no qual a pessoa depois de assentado seu Exu, “passeia com ele pelo mercado” solicitando sua benção. 

Outro destaque é o fato de Exu se apresentar como manipulador dos caminhos, Ojisé, e do fogo, Inà, uma vez que é Ogum, quem, por excelência “percorre os caminhos, é o seu dono”; Xangô, por outro lado, é o “deus que conhece as manhas do fogo”. Se podemos dizer que Exu consegue manipular tanto os “caminhos”, quanto o “fogo”, elementos índices de outros orixás, podemos afirmar que ele não “anda” sozinho, sua energia se apresenta em comunhão com as outras energias; ele tem contato muito íntimo com os outros orixás. Neste sentido, agredi-lo é agredir aos outros ébora, pois, simboliza, sintetiza os poderes dos outros éboras.

Em outro texto sobre Exu, temos que ele foi procurar uma rainha abandonada já há algum tempo por seu marido e lhe disse: “Traga-me alguns fios da barba do rei e corte-os com esta faca. Eu lhe farei um amuleto que lhe trará de volta o seu marido”. Em seguida, Exu foi à casa do filho da rainha, que era o príncipe herdeiro. Este vivia numa residência situada fora dos limites do palácio do rei. O costume assim o determinava, a fim de prevenir toda tentativa de assassinato de um soberano por um príncipe impaciente por subir ao trono. “O rei vai partir para a guerra”, disse-lhe ele, “e pede o seu comparecimento esta noite ao palácio, acompanhado de seus guerreiros.” Finalmente, Exu foi ao rei e disse-lhe: “A rainha, magoada pela sua frieza deseja matá-lo para se vingar. Cuidado, esta noite”. E a noite veio. O rei deitou-se, fingiu dormir e viu, logo depois, a rainha aproximar uma faca de sua garganta. O que ela queria era cortar um fio da barba do rei, mas ele julgou que ela desejava assassiná-lo. O rei desarmou-a e ambos lutaram, fazendo grande algazarra. O príncipe, que chegava ao palácio com seus guerreiros, escutou gritos nos aposentos do rei e correu para lá. Vendo o rei com uma faca na mão, o príncipe pensou que ele queria matar sua mãe. Por seu lado, o rei ao ver o seu filho penetrar nos seus aposentos, no meio da noite, armado, e seguido por seus guerreiros, acreditou que eles desejavam assassiná-lo. Gritou por socorro. A sua guarda acudiu e houve então, grande luta, seguida de massacre generalizado. (VERGER, 2002: 77).

Neste texto, Exu brinca com todos os personagens, formando entre os três - fiquemos atentos à importância deste número para Exu! - um elo, que não une, mas que separa. A idéia de elo, efetivamente nos leva à imagem da ligação. Em Exu, tudo pode ser diferente, uma vez que é o paradoxo por excelência. Não esqueçamos que nos orixás moram o poder de “fazer” e “desfazer”, a relação de causa e efeito, o ataque e a defesa. O mesmo orixá que pune é o que absolve, o mesmo que ataca com problemas de saúde é quem conhece a cura. Um mesmo elemento, dendê, por exemplo, pode ser utilizado tanto para reforçar vibrações negativas, quanto para acalmar. 

Sàlámì (1991:25) apresenta este orixá como o “òta òrìsà”, “o inimigo dos orixás”; e, nos ensina em sua oração, “Esù máse mi, omo elòmíran ni o se”, “Exu, não manipule a mim. Manipule outra pessoa. Em seu poder mágico, Exu é o manipulador do ebó, o manipulador do sistema oracular - não há adivinhação sem Exu -, é ele o manipulador dos indivíduos e os impele à ação. No mito que Verger nos apresenta, Exu fornece a faca e diz que irá se utilizar de sua magia fazendo um amuleto para a rainha, cuja força lhe trará de volta seu marido. Ampliando a visão temos a faca como um objeto que Exu divide com Ogum, deus do ferro, dos metais - temos posta a ligação entre os dois orixás novamente -, lembremos do nome de Exu Ol’obé; Senhor do Obé, da faca; por isso mesmo, toda vez que se produz uma oferenda e nela se utilize uma faca, tanto Exu, quanto Ogum devem ser louvados, pois participam deste evento, independentemente de para qual orixá o ritual é produzido. Exu de fato poderia ter viabilizado a união e produzido o amuleto com alguns fios da barba do rei, uma vez que é detentor de alta magia, mas a utiliza para fazer exatamente o contrário. Exu é Elegbara: o manipulador de toda e qualquer energia. Sem ele, os amores não se fazem. Sem ele Xangô não lança seus raios. Sem ele, os preparados de Ossain tornam-se inócuos. Sem ele o tempo não corre, ou corre para trás, em descontrole. Esta é a sua condição dinâmica de agbará, ao mesmo tempo controlador e dono da representação do sistema mágico. (SANTOS, 1986:134). E sua magia já começa a ter efeito antes mesmo de iniciá-la, no momento mesmo em que engana, ilude, trapaceia os seus personagens - soberanos. Pura ironia: Exu não escolhe a quem atacar, seu poder é exercido sobre a mulher do mercado e sobre o rei. Exu é aquele que desconstrói o que o homem construiu: “O costume assim o determinava, a fim de prevenir toda tentativa de assassinato de um soberano por um príncipe impaciente por subir ao trono”. Não adiantou o fato de o príncipe não morar no palácio. Exu vai de encontro ao que não foi por ele estabelecido, e coloca o príncipe, com seus guerreiros, num cenário que não era o seu, causando confusão: o príncipe ouve gritos e pensa que seu pai quer matar sua mãe. O rei chama a guarda, e uma carnificina se estabelece. São personagens, neste texto, manipulados pela vontade de Exu, aquele que consegue piorar ainda mais o que já está ruim. A rainha queria seu marido de volta, índice de melhoria sentimental com o retorno para o esposo, a vida em família. Exu lhe tira tudo: a vida dela, de seu filho e do rei. Isso é resultado do intenso poder que Exu tem de lidar com vida e morte.

Assim se dá a dinâmica dos mitos e rituais. É possível, portanto, afirmar que os mitos dos iorubás permanecem vivos nos cultos dos candomblés afro-brasileiros. Basta observar o modo como o povo do santo se apropria desses discursos mitológicos, reiterando-os por meio de seus rituais. Numa visão dialética, há a apropriação e reiteração destes discursos, numa batalha de representação, numa luta por se fazer representar, ao invés de ser apenas representado: expressão de política de identidade . De modo que, ao se apropriar dos mitos, o povo do santo, em seus rituais transita por meio de um discurso que “fala dele”, ao mesmo tempo em que “fala de si”. Neste aspecto, são os mitos que, por meio das tramas discursivas, fornecem à religião padrões de comportamento a seus fiéis, aos seus rituais, que podem “assim ser usados com modelo a ser seguido, ou como validação social para um modo de conduta já presente”.

Por Alexandre de Oliveira Fernandes e Manoel Santos Mota

Referência Bibliográfica

FORD, Clyde W. O herói com rosto africano: mitos da África. São Paulo: Summus, 1999.

MINDLIN, Betty. O fogo e as chamas dos mitos. Estud. avançados., São Paulo, v. 16, n. 44, 2002.

PRANDI, Reginaldo. Herdeiras do Axé: sociologia das religiões afro-brasileiras. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, HUCITEC, 1996.

. Os candomblés de São Paulo: a velha magia na metrópole nova. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, HUCITEC, 1991.

. Referências das religiões afro-brasileiras: sincretismo, branqueamento, africanização. In: CAROSO, Carlos, BACELAR, Jéferson (org.). Faces da tradição afro-brasileira: religiosidade, sincretismo, anti-sincretismo, reafricanização, práticas terapêuticas, etnobotânica e comida. 2.ed. Rio de Janeiro: Pallas; Salvador, BA: CEAO, 2006.

. O jogo dos fragmentos africanos. Revista Usp, n. 18, p. 80-91, 1993.

RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Alma africana no Brasil: os iorubás. São Paulo: Oduduwa, 1996.

SÀLÁMÌ, Síkírù. Cânticos dos orixás na África. São Paulo: Oduduwa, 1991.

SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte: Pàdê, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 1986.

SILVA, Tomaz Tadeu da Silva. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

VERGER, Pierre. Orixás: deuses iorubás na África e no novo mundo. Salvador: Corrupio, 2002.


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