segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A violência e o sagrado - René Girard





Em Violência e o Sagrado, tradução brasileira do original La Violence et le Sacré, o antropólogo René Girard integra a sua teoria do desejo mimético anteriormente desenvolvida com seus estudos sobre o sacrifício ritual nas sociedades antigas, buscando desenvolver uma teoria compreensiva do sacrifício humano em tais sociedades.
Girard inicia o livro demonstrando o duplo aspecto das vítimas expiatórias. Elas são a um só tempo tratadas como seres sagrados e criminosos. Isto é assim porque representam nestas sociedades o papel de válvula de escape dos impulsos violentos acumulados no interior da mesma. Ela é vítima substitutiva: sobre ela seus verdugos despejam todo ódio e sede de violência que carregam, aliviando-se e livrando a sociedade de possíveis conflitos. Assim, para Girard, o sacrifício ritual, presente invariavelmente em todas as culturas primitivas e antigas, mesmo na Grécia clássica, contra vítimas humanas ou animais, tem uma significação real e não meramente simbólica, pois serve para ?apaziguar as violência intestinas e impedir a explosão de conflitos.?
Uma sociedade está sempre sujeita a uma escalada de violência devido ao círculo vicioso de represálias. Tal já foi observado por etnólogos em sociedades primitivas. O surgimento de uma violência incontrolável no interior de uma sociedade ocorre normalmente nos momentos da crise sacrificial, ou seja, quando os sacrifícios rituais já não mais atuam eficientemente como válvula de escape dos impulsos violentos.
Para Girard os ritos sacrificiais bem como os mitos que os narram simbolicamente representam a forma de uma sociedade reviver o seu acontecimento fundador, o sacrifício não mais ritual, mas real e espontâneo de uma vítima expiatória. Aqui insere-se a teoria do desejo mimético. Conforme nos conta Girard, com fortes argumentos e amplo embasamento documental, o desejo mimético ( o desejo de ter o bem do outro) é inerente à natureza humana. Os homens desejam o bem e o ser do próximo invariavelmente, o que terminará por gerar a rivalidade mimética. O detentor do bem quererá defendê-lo mas, ao mesmo tempo, estimulará o desejo do outro pois o fato de o seu bem ser também desejado por outrem potencializa o valor do mesmo. Quando um irromper com um gesto violento o outro imediatamente revidará também por impulso mimético e assim se iniciará o blood feud, um rosário interminável de represálias que somente terminará com o sacrifício de uma vítima expiatória que trará de volta a paz à sociedade.
Para Girard, toda sociedade primitiva em seus primórdios experimentou o evento de uma crise de violência generalizada que ameaçava a sua própria existência e que findou com o sacrifício de uma vítima escolhida arbitrariamente sobre a qual foram despejado todos os ódios e desejos de vingança, restaurando-se a paz social e fundando-se a própria sociedade politicamente organizada. Os mitos narrariam figuradamente aqueles eventos, e dentre os mitos, Girard inclui não apenas as narrativas mitológicas, mas a tragédia grega e mesmo o Antigo Testamento. Nestes textos, Girard descobre a descrição figurada parcial ou total da rivalidade mimética, da escalada de violência e do sacrifício de vítimas expiatórias. A análise e comparação destes textos, bem como os subsídios científicos trazidos pelos estudos etnológicos e antropológicos, compõem a metodologia através da qual Girard chega às conclusões de seu trabalho. Assim Girard explica o sentido oculto de muitos dos textos das culturas primitivas e antigas: eles representam simbolicamente os horríveis eventos fundadores da sociedade que terminam no sacrifício da vítima expiatória.

Os ritos sacrificiais são invariavelmente encontrados nas sociedades primitivas e antigas. É válido lembrar aqui o exemplo do pharmakós grego, um pária que era mantido cativo para ser sacrificado em épocas de grandes crises e catástrofes, mesmo naturais, como se sua morte pudesse eliminar a crise ou a catástrofe, tal como,no acontecimento fundador da sociedade, o sacrifício da primeira vítima expiatória eliminou uma grave crise de violência. 
O rito serve assim para manter viva a memória do acontecimento fundador e para servir como um despejo de impulsos violentos. 
Quando o rito já não mais desempenha a sua função, surge a crise sacrificial que é muito bem representada pelo mito de Caim e Abel. Abel sacrifica os primogênitos de seu rebanho, portanto tem uma válvula de escape. Caim já não a possui, por isso não contém seus impulsos violentes e, movido pelo desejo mimético ou inveja pelo amor que Deus tem pelo seu irmão, mata Abel.
Não apenas os ritos e os mitos são explicados por Girard através de suas teorias do desejo mimético e do sacrifício, mas inúmeros costumes primitivos como o uso de máscaras, a repulsa ao sangue menstrual e aos gêmeos, e muitas das proibições ou regras de direito primitivas. 
A teoria de Girard, cujos dois pilares são os conceitos de desejo mimético e de sacrifício de vítimas expiatórias, constitui assim uma verdadeira teoria antropológica e sociológica geral, compreensiva de muitos fenômenos sociais e humanos. Assim, as teorias de Girard nos ajudam a compreender problemas do nosso próprio tempo tais como o racismo, o anti-semitismo ou o aborto. Afinal, a perseguição por motivos de raça ou a luta pela liberação do aborto não seriam formas de ressuscitar o velho mecanismo sacrificial, elegendo novas vítimas expiatórias de nossos ódios intestinos.
Numa etapa posterior de seu trabalho, a partir da obra ? Das Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo?, Girard explica como o mecanismo dos sacrifícios rituais foi perdendo importância e sendo eliminado das sociedades ocidentais por força do judaísmo e do cristianismo.

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