segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Texto excelente de Edgar Morin, e que vale a pena ver de novo...


Edgar Morin por meio da visão integradora da totalidade, pensou os saberes na perspectiva da complexidade contemporânea, explorando novos ângulos, muitos dos quais ignorados pela pedagogia atual , 
para servirem de eixos norteadores à educação do próximo milênio 
Os saberes propostos por Morin que, como ele mesmo afirma, antecede qualquer guia ou compêndio do ensino, inserem-se na idéia de uma identidade terrena onde o destino de cada pessoa joga-se e decide-se em escala internacional, cabendo à educação a missão ética de buscar e trabalhar uma solidariedade renovadora que seja capaz de dar novo alento à luta por um desenvolvimento humano sustentável. 
Morin considera que há sete saberes fundamentais com os quais toda cultura e toda sociedade deveriam trabalhar, segundo suas especificidades. Esses saberes são respectivamente as Cegueiras Paradigmáticas, o Conhecimento Pertinente, o Ensino da Condição Humana, o Ensino das Incertezas, a Identidade Terrena, 
o Ensino da Compreensão Humana e a Ética do Gênero Humano. 
Esses saberes são indispensáveis frente à racionalidade dos paradigmas dominantes que deixam de lado questões importantes para uma visão abrangente da realidade. Para Morin, é impressionante como a educação, que visa transmitir conhecimentos, seja cega em relação ao conhecimento humano. Ao invés de promover o conhecimento para a compreensão da totalidade, fragmenta-o, impedindo que o todo e as partes se 
comuniquem numa visão de conjunto. 
Por outro lado, como diz Morin, o destino planetário do gênero humano é ignorado pela educação.
 A educação precisa ao mesmo tempo trabalhar a unidade da espécie humana de forma integrada com a idéia de diversidade. O princípio da unidade/diversidade deve estar presente em todas as esferas. 
Para tanto, torna-se necessário educar para os obstáculos à compreensão humana, combatendo o egocentrismo, 
o etnocentrismo e o sociocentrismo, que procuram colocar em posição secundária 
aspectos importantes para a vida das pessoas e das sociedades.
Mas vamos ao texto...

COMPLEXIDADE E LIBERDADE

A complexidade nos convoca para uma verdadeira reforma do pensamento, semelhante à produzida no passado pelo paradigma copernicano. Mas essa nova abordagem e compreensão do mundo, de um mundo que se "autoproduz", confere também um novo sentido à ação: trata-se de fazer nossas apostas, o que vale dizer que com a complexidade ganhamos a liberdade.
A grande descoberta do século é que a ciência não é o reino da certeza. Ela se baseia, seguramente, numa série de certezas local e espacialmente situadas. A rotação da Terra em torno do sol, por exemplo, nos parece certa; mas seria possível dizer isso, tanto 100 milhões de anos antes de nossa era quanto depois, sabendo-se que o Universo está submetido a flutuações e perturbações, às quais hoje chamamos de movimento caótico? A ciência é de fato um domínio de múltiplas certezas, e não o da certeza absoluta no plano teórico. A obra de Popper se tornou indispensável para a
compreensão de que uma teoria científica não existe como tal, a não ser que, na medida em que aceita ser falível, submete-se ao jogo da "falsificabilidade" e, portanto, aceita sua biodegradabilidade.
Ordem, separabilidade e lógica: os pilares da ciência clássica
A ciência clássica se apóia nos três pilares da certeza, que são a ordem, a separabilidade e a lógica.
Para ela, esses eram os fundamentos absolutos. A ordem do Universo, tal como entendida por Descartes e Newton, era o produto da perfeição divina. Com Laplace, a hipótese de Deus é descartada: a ordem funciona sozinha, é "autoconsolidada". A idéia de determinismo absoluto tornou-se objeto de uma crença quase religiosa entre os cientistas, que por isso se esqueceram de que ela não pode, de modo algum, ser demonstrada.
A segunda idéia-chave era a separabilidade. Conhecer é separar. Em face de um problema complicado, dizia Descartes, é preciso dividi-lo em pequenos fragmentos e trabalhá-los um após o outro. Assim, as disciplinas científicas são desenvolvidas a partir da divisão do interior das grandes ciências, a física, a biologia etc, o que dá origem a compartimentos sempre novos. No limite, pode-se dizer que a separação entre ciência e filosofia e, mais amplamente, entre ciência e cultura humanista – filosofia, literatura, poesia etc –, está instituída em nosso século como uma necessidade legítima.
Nas ciências, a separação entre o observador e sua observação, ou seja, entre nós, humanos, que consideramos os fenômenos, e estes (os objetos de conhecimento), tinha valor de certeza absoluta.
O conhecimento científico, objetivo, implicava a eliminação do indivíduo e da subjetividade. Se existisse um sujeito, ele causaria perturbação – seria um ruído.
Terceiro pilar: a lógica, a indução. Com base em um número importante e variado de observações, podia-se tirar delas leis gerais. Quanto à dedução, era um meio implacável de conduzir à verdade. Os princípios aristotélicos da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído, permitiam eliminar
toda confusão, equívoco e contradição.
A lógica, a separabilidade e a ordem levaram para a ciência clássica essa certeza absoluta, na qual ela se baseia. E os resultados têm sido tão brilhantes que acabaram, paradoxalmente, colocando em xeque os princípios fundamentadores da separação. Foi a ordem, isto é, o determinismo (tudo o que escapa ao acaso, às perturbações e à imprevisão), que entrou primeiro em crise. Com efeito, a termodinâmica introduziu a desordem molecular no fenômeno chamado calor. Sabemos hoje que 1
Sociólogo, epistemólogo e filósofo francês, formado em História, Geografia e Direito.
Pesquisador emérito do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique). Formado em Direito, História e Geografia se adentrou na Filosofia, na Sociologia e na Epistemologia. Um dos principais pensadores sobre complexidade.

Nosso Universo tem uma origem calorífica, surgiu de um fenômeno térmico inicial, uma espécie de explosão seguida de enorme agitação.
A presença da desordem universal se revela em todos os níveis: microscópico, cosmofísico e também histórico, humano. Em relação a este, lembramos que a história não se reduz a processos determinísticos: é também feita de bifurcações, acasos, crises, daquilo que Shakespeare chamou de  "o som e a fúria". Isso não quer dizer, no entanto, que a desordem tomou o lugar da ordem. Um
Universo assim seria tão insensato e impossível como aquele em que reinasse a ordem pura.
No reinado da ordem pura não há criação, não há possibilidade de nada novo. Se só existisse adesordem, agitação, a álea, o Universo seria simplesmente inviável. É preciso, portanto, que desde o começo um certo número de princípios, considerados como de ordem, provoquem, sob certas
condições, alguns encontros nessa agitação de partículas. O princípio de interação forte ligará e formará núcleos; o princípio de interação eletromagnética impelirá os elétrons, para que eles se coloquem em volta do núcleo e formem os átomos; enfim, o princípio gravitacional atua no plano da formação dos astros, das galáxias...
Em outros termos, estamos diante deste paradoxo: as noções de ordem e desordem se repelem mutuamente. O Universo é um coquetel de ambas, uma mistura muito diferente segundo os casos, as condições, os lugares, os momentos...
De acordo com o ângulo de observação, um dado fenômeno pode ao mesmo tempo se inclinar para um lado ou para o outro. Os átomos de carbono, por exemplo, são formados nos sóis anteriores ao nosso, pela reunião instantânea de três núcleos de hélio.
No interior dessas fantásticas forjas que são os astros, as interações são inumeráveis e o encontro, no mesmo momento, de três núcleos de hélio, é tão raro quanto aleatório. Entretanto, uma vez ocorrido, uma lei entra em jogo: a do carbono que vai ser produzido.

É no encontro da ordem e da desordem que se produz a organização. Quando os três núcleos de hélio se reúnem, nasce uma delas, a do átomo de carbono. Essas organizações criam, no seu próprio interior, uma ordem que lhes é própria. O mundo dos seres vivos obedece a todas as leis da física e da química; sua ordem é baseada na autoprodução, na regeneração etc.
Quanto á separabilidade, percebeu-se que ela leva à divisão das partes constituintes dos conjuntos organizados em sistemas, o que proporciona um conhecimento insuficiente, mutilado. Pode-se extrair um corpo de seu meio natural, colocá-lo num contexto experimental, controlado pelas variações que sobre ele atuam. Não é possível conhecer, numa única avaliação, a relação profunda que existe entre o corpo e seu ambiente. Os seres vivos não são nada sem o seu meio. As experiências realizadas em cativeiro, para investigar a inteligência de seres sociais como os chimpanzés, não nos têm permitido saber o que eles aprenderam depois delas. Com efeito, no curso
de observações pacientes desses animais, em seu meio natural e em suas sociedades, pôde-se constatar que os indivíduos são diferenciados e que existem relações muito complexas entre eles. O chimpanzé adulto, por exemplo, não pratica o incesto.

A separabilidade perdeu seu valor absoluto. Uma das peculiaridades de um conjunto organizado em sistema decorre do fato de que, ao existir, essa organização produz qualidades novas, chamadas "emergências". Estas retroagem sobre o todo, e não podem ser identificadas quando se tomam os elementos isoladamente. Desse modo, a organização viva gera um certo número de qualidades, como autoprodução, autonutrição e auto-reparação. Tais qualidades não se encontram nas partes, mas as beneficiam. Da mesma forma, uma sociedade produz emergências culturais, como a linguagem, que retroage sobre os indivíduos e lhes permite, por sua aquisição (que é também conhecimento), tornarem-se plenamente humanos.
Consumou-se hoje, nas ciências, uma segunda transformação. A primeira aconteceu na Física, no começo deste século, e destronou a ordem. A outra começou na segunda metade do século, com as ciências ditas sistêmicas, que lidam com os sistemas ecológicos espontâneos, que nascem das
interações entre as plantas, os animais, o terreno geofísico, o clima. Todas essas interações produzem um conjunto mais ou menos auto-regulado, submetido a perturbações. Dessa maneira, a partir dos anos 80, a ecologia começou a levar em conta, além dos ecossistemas, o sistema ainda
mais complexo e mais ou menos regulado que é a biosfera. Isso permitiu acrescentar os seres humanos e sua civilização técnica, e prever com alguma certeza os riscos possíveis da desregulação.

A partir da descoberta da tectônica das placas, nos anos 60, as ciências da Terra (sismologia, vulcanologia, geologia), que não se comunicavam entre si, hoje são articuladas umas às outras. Essa circunstância tem permitido compreender o planeta como um conjunto articulado e complexo.
O ecologista, por exemplo, não conhece todos os dados da Zoologia, Botânica, Física, Geografia; tem um conhecimento parcial de cada uma, "um pouco de tudo", como dizia Pascal. No entanto, ao apelar para as competências dessas diferentes especialidades, ele dá um sentido a seus
conhecimentos e os articula entre si. Infelizmente, a Sociologia não fez essa revolução. A Biologia também não.
A cosmofísica, na realidade, tornou-se inseparável da cosmologia, que é um ensaio de compreensão do mundo. A revolução da ressurreição do cosmos (durante um século, o espaço-tempo — uma espécie de infinito — havia tomado o seu lugar) começou logo que se constatou o afastamento das
galáxias. Num determinado momento, supunha-se que elas eram muito próximas umas das outras e que havia existido um núcleo inicial. Hoje sabemos que o cosmos tem uma história e que ela sofreu transformações. O cosmólogo foi levado a refletir sobre o mundo, sua origem, seu propósito ou sentido, se é que existe um. Ele retoma assim a relação filosófica, reinventa uma filosofia em estado selvagem. Com efeito, por falta de interesse dos filósofos, os cientistas são obrigados a refletir sobre o sentido de suas descobertas.
A questão: "O que é o real?", que parecia tão evidente, reapareceu. O que é o Universo onde – para seguir d'Espagnat – as coisas obviamente separadas são, num certo nível, inseparáveis, a partir do momento em que interagem? Trata-se de falar de inseparabilidade na separabilidade. O grande desafio do conhecimento repousa sobre esse paradoxo: para uma mesma realidade, depara-se ao mesmo tempo com o contínuo e com o descontínuo. As célebres experiências sobre a onda e o corpúsculo, relativas à natureza da partícula, mostraram que ela se comporta tanto como ondulação quanto como grânulo. Ou seja: ora de modo contínuo, ora de forma descontínua – o que é contraditório do ponto de vista lógico. Reencontramos os mesmos problemas no que se refere à sociedade: se a consideramos de modo global, trata-se de um continuum – os indivíduos nela se dissolvem – como ainda imaginam numerosos sociólogos. Ou então, pode-se considerar que tanto
os indivíduos quando a sociedade se diluem, o que permite a certos autores dizer que esta não existe, e que só contam as interações entre as pessoas. No caso da espécie e do indivíduo é a mesma coisa: não existem senão indivíduos. Contudo, quando se leva em conta um longo espaço de tempo,
eles se dissolvem e surge a noção contínua de espécie.

Eis o paradoxo do separável e do inseparável. Pascal não só já o havia colocado, mas tinha também indicado o caminho a seguir para avançar no conhecimento. Que dizia ele? Que "sendo todas as coisas ajudadas e ajudantes, causadas e causadoras, estando tudo unido por uma ligação natural e insensível, acho impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, e impossível conhecer o todo sem conhecer cada uma das partes". Nessa frase, de uma densidade e clareza extraordinárias, ele formula — no mesmo momento em que Descartes, triunfante, introduz o princípio da separação absoluta — o programa do conhecimento contemporâneo, que ainda não se conseguiu pôr em prática.
No que concerne à lógica, o umbral foi transposto no momento em que certos teóricos, ou pensadores, mostraram os limites da indução. Segundo o célebre exemplo de Popper, a regra geral que diz que "todos os cisnes são brancos" já não é una, porque não se pode pressupor que não existam, em algum lugar, cisnes negros. A indução não é certeza absoluta; significa, em muitos casos, a existência de fortes possibilidades, de quase-certezas. Essa "derrapagem", que ocorre também na dedução, foi assinalada pelos gregos. É o "paradoxo de Creta", segundo o qual um cretense disse: “Tudo o que os cretenses dizem é mentira”. Se o que ele disse é verdade, então ele
disse uma mentira. Se o que ele disse é mentira, então ele disse uma verdade.

Esse paradoxo foi retomado por Russell, que tentou superá-lo. Ele nos conduz ao teorema de Gödel, cujo sentido é múltiplo, desde que queiramos investigá-lo além de seus limites matemáticos. É um problema de lógica fundamental, que nos ensina que nenhum sistema tem a capacidade de dar a si próprio a prova de sua consistência, atribuir-se uma certeza suficiente a partir de suas próprias fontes. Conseqüência metalógica: nenhum ser humano pode se autoconhecer por completo. O mesmo acontece com a Humanidade. Eis uma abertura reveladora da inconclusibilidade do
conhecimento — e da lógica.
A partir daí, a ciência clássica se defrontou com a contradição e começou a temer o erro. Niels Bohr teve a coragem de afrontar a aporia da onda e do corpúsculo sem poder ultrapassá-la, o que significa reconhecer que se trata de dois termos contraditórios e complementares. Admite-se hoje que é
possível chegar, por meios racionais e empíricos, a essas contradições. De resto, Kant já havia mostrado que no horizonte da razão havia um certo número de impasses fundamentais.

Pode-se enfrentar esse problema não sonhando entrar numa nova lógica, que nos permita integrar as contradições, mas mostrando que é possível promover um incessante jogo de circularidade entre nossa lógica tradicional e as transgressões necessárias ao progresso de uma racionalidade aberta.
Esse propósito pode ser ilustrado tomando o aforismo de Heráclito: "Viver de morte, morrer de vida". Eis uma proposição extravagante. No entanto, sabemos hoje que os seres vivos – nosso organismo, por exemplo – ao funcionar degradam sua energia, isto é, as moléculas de suas células.
Estas morrem e são substituídas por outras. Dizendo de outra forma, nossa vida continua graças à morte celular, porque o organismo é dotado de um poder de regeneração contínua. Cada batimento do coração, cada movimento respiratório, é uma obra de regeneração. O oxigênio é um
detoxificante.

Do mesmo modo, uma sociedade vive da morte de seus indivíduos. Faz isso passando às novasgerações a cultura que começa a se decompor nos cérebros mais senis. É como viver da morte. Essa contradição lógica fundamental pode ser explicada, etapa por etapa, de modo segmentar, sem sair do caminho lógico (as células têm a capacidade de se reproduzir). Entretanto, para compreender esse fenômeno básico necessitamos do paradoxo (que vale também para os ecossistemas) chamado
circularidade trófica, que ilustra a recursividade da vida: o ciclo vital, que é também de morte. São duas faces da mesma realidade. Morrer de vida: esse é o nosso processo de rejuvenescimento contínuo. É "mortificante" remoçar, eis a trágica lição da vida.

Estas formulações nos permitem unir o que o pensamento clássico não conseguiu. Continua sendo verdade que o maior inimigo da vida é a morte, e que o maior desafio ao fenômeno da decomposição é o renascimento da vida. O pensamento deve ser capaz de confrontar os antagonismos, poder
enxergar as aporias, sem que para tanto precise renegar o valor da lógica, a dedução ou a indução.

O pensamento complexo

Desses três desafios – a relação entre a ordem, a desordem e a organização; a questão da separabilidade ou a distinção entre separabilidade e não-separação; e o problema da lógica – podem ser tiradas as três vertentes do pensamento complexo. Discutir sem dividir: a palavra complexus retira daí seu primeiro sentido, ou seja, "o que é tecido junto". Pensar a complexidade é respeitar a tessitura comum, o complexo que ela forma para além de suas partes.

A segunda linha fundamental é a imprevisibilidade. Um pensamento complexo deve ser capaz de não apenas religar, mas de adotar uma postura em relação à incerteza. As ciências físicas, que descobriram a incerteza, encontraram estratégias para lidar com ela, utilizando a estatística, por
exemplo. A eletrônica permite alcançar resultados de grande precisão, em termos de conhecimento desse mundo flutuante. O pensamento capaz de lidar com a incerteza existe no domínio das ciências, mas não nos âmbitos social, econômico, psicológico e histórico.

O terceiro ponto é a oposição da racionalização fechada à racionalidade aberta. A primeira pensa que é a razão que está a serviço da lógica, enquanto a segunda imagina o inverso. Racionalizar significa acreditar que, se um determinado sistema é coerente, é portanto perfeito e por isso não
precisa ser verificado. Vivemos sob o império de idéias racionalizadoras, que não conseguem se dar conta do que acontece e privilegiam os sistemas fechados, coerentes e consistentes. A ciência econômica contemporânea – formalizada e matemática – é um magnífico exemplo de racionalização. É inteiramente fechada, não consegue perceber as paixões, a vida, a carne dos seres humanos. Por isso, é incapaz de fazer previsões quando surgem eventos inesperados. Mais ainda que no século de Moliére, os Disfoirus triunfam.
O desafio é hoje generalizado. Falar da incerteza é falar do caos. Emprego esse termo em seu sentido original, e não no derivado das teorias sobre o tema. Trata-se, como no pensamento grego, da idéia de que o cosmos, ou universo ordenado, nasce do caos, isto é, que forças genésicas extremamente violentas, comportando potencialmente a ordem e a desordem indiferenciadas, podem se exprimir num determinado momento. Os gregos pensavam que a origem do organizado, ou racional, é aloucura. É o que sustenta Platão, quando diz que diké, a justiça, é filha de hubris, o delírio. O caos é um pouco daquilo que corresponde à palavra physis, isto é, o mundo no qual estamos e do qual as coisas nascem. Está continuamente presente sob o cosmos, ou – pouco importa – no interior dele.
O Universo é caos. Isso quer dizer que forças de desordem, ordem e organização brotam continuamente do seu seio, o que dá origem à constituição de novas estrelas, a colisões de galáxias e, em nossa Terra, ao conflito de impulsos de barbárie e associação.
De acordo com a teoria do caos, processos deterministas por natureza conduzem, com grande rapidez, a estados imprevisíveis e aparentemente desordenados. Por quê? Porque as interações sãoincontroláveis e o conhecimento total e absoluto dos estados iniciais não nos é permitido. É uma maneira de dizer que, mesmo na ocorrência de um determinismo inicial, há imprevisibilidade e desordem aparentes. O que compreendeu Henri Atlan, o termodinâmico de origem austríaca, quando disse que a vida existe à temperatura de sua própria destruição? Segundo o seu belo livro Entre le
Cristal et la Fumée [Entre o Cristal e a Fumaça], é preciso entender que não somos nem fumaça nem cristal. Não somos seres fluidos nem sólidos. Somos híbridos que vivem à temperatura de sua combustão e destruição.
No desafio da complexidade, certos filósofos podem nos ajudar: Heráclito, com o enfrentamento das contradições; Sócrates com a dialética, cujo jogo de oposições faz progredir o conhecimento;
Nicolás de Cusa, no plano místico; João da Cruz; Jacob Boehme; Pascal, em cuja obra não se reconheceu o papel central que desempenham as contradições; Hegel, evidentemente; Nietzsche, até certo ponto.

A emergência dos sistemas

Entretanto, para que adquiríssemos os meios intelectuais e conceituais necessários à entrada no universo da complexidade, foi preciso esperar pelos anos 50, quando surgiram três teorias novas. A primeira foi a cibernética de Norbert Wiener, que é ao mesmo tempo engenheiro e pensador. A ele
devemos a idéia de retroação e circularidade, que estava latente desde a obra de Marx, na qual a superestrutura retroage sobre a infra-estrutura. Essa idéia de ciclos retroativos, que quebram a causalidade linear, mostra que os fatos podem, eles próprios, tornar-se causadores, ao retroagir sobre
a causa, como Pascal já havia assinalado. Essa recursividade tem dois aspectos: um, regulador, que impede que os desvios destruam os sistemas; e outro potencialmente destruidor, chamado de feedback positivo, que os fazem explodir.

Nos anos 60, outro pensador, o nipo-americano Magoroh Maruyama, fez a seguinte proposição: não se pode ter criação, a não ser por meio dos feedbacks positivos. Em outros termos, quando um
sistema de desregula, há um desvio que se amplifica. Nesse caso, o sistema – sobretudo se é complexo (social ou humano) – em vez de se desgovernar pode transformar-se. A criação não é possível senão pela desregulação.
O segundo aporte conceitual é a teoria dos sistemas, que propõe que o todo é maior que a soma de suas partes, mas também que é menor que ela; assim, a totalidade pode oprimir as partes e impedir que estas dêem o melhor de si mesmas. Isso tem conseqüências político-sociais indiretas. Um grande império não é melhor porque é um todo: sua bancarrota pode ser salutar, ao liberar as potencialidades das partes dominadas.

A idéia capital aqui é a de emergência. As qualidades que aparecem podem ser induzidas, mas não podem, em contrapartida, ser deduzidas logicamente. As emergências estão em qualquer espécie de
flor. A evolução biológica levou, num determinado momento, a uma verdadeira explosão floral — mas persiste a questão de saber por que as flores têm necessidade de mostrar o seu sexo, de serem exibicionistas!

O terceiro aporte é a teoria da informação, de Shannon e Weaver. É um instrumento capaz de lidar com a incerteza, com o inesperado. Extrai-se do mundo do ruído algo de novo e muitas vezes surpreendente. A noção de informação, ao mesmo tempo física e semântica, nos introduz num
mundo onde o novo pode aparecer, ser reconhecido, assinalado... Captamos o novo nessa relação permanente de ordem e redundância, na integração do conhecido e na ordem do ruído.

Essas três teorias formam uma espécie de "rés-do-chão". No primeiro estágio, pode-se colocar a contribuição de Von Foerster e Von Neumann. Este, refletindo sobre a diferença entre as máquinas artificiais – as que produzimos a partir de elementos fabricados e confiáveis – e as máquinas
naturais, cujos elementos são pouco confiáveis (essas moléculas que se degradam por um nada!), perguntou-se: por que as primeiras, logo que começam a funcionar, iniciam seus processos de usura e degradação, enquanto que as segundas – os seres vivos – podem progredir, evoluir? A resposta é que os viventes têm o poder da auto-reparação, da auto-reforma.

A segunda idéia, de Von Foerster, é a "ordem a partir do ruído". Seu jogo experimental era o seguinte: tomava de uma caixa, dentro da qual colocava cubos com determinados lados imantados.
Em seguida provocava agitação, isto é, introduzia na caixa uma energia não-direcional e, portanto, a desordem. Apesar disso, a presença de um princípio de ordem – os ímãs – permitia que os cubos chegassem a uma arquitetura bem organizada. Eis o fenômeno da auto-organização.

O segundo estágio é o que se poderia chamar de auto-eco-organização. Um ser vivo precisa nutrir-se para regenerar sua energia. Para ser autônomo, tem necessidade do meio ambiente, de onde retira não energia bruta, mas já organizada. Do mesmo modo, temos gravada em nossa organização uma
ordem cósmica, a alternância do dia e da noite. Essa ordem (por uma espécie de mecanismo cíclico, que pode se tornar independente da luz e da obscuridade, como mostraram experiências em cavernas sem luz) nos permite alternar a vigília e o sono...

Tudo isso para dizer que a separação entre o conhecedor e o conhecido não pode ser alcançada.
Sabe-se, depois de Kant, que para conhecer o mundo projetamos nele nossas categorias, nossos a priori espaciais e temporais.

Por uma convivência solidária

Essa circunstância pode ser ainda confirmada pelo funcionamento do cérebro humano: isolado no interior de uma caixa fechada, ele todavia se comunica com o Universo pela mediação de terminais sensoriais. Os estímulos visuais, por exemplo, são transformados num código binário, que tecido cerebral retrabalha e transforma em percepção ou representação. O conhecimento não é senão uma tradução, uma reconstrução. Não conhecemos a essência das coisas exteriores. Sabemos das coisas objetivas, que podemos confirmar, mas não há conhecimento sem integração do conhecido. Essa
circunstância vale também para os fenômenos sociais e humanos. O sociólogo e o economista são parte da sociedade, e a totalidade desta – ou seja, a cultura, a linguagem – está também neles.

Num estágio superior, vejo a necessidade de uma reforma paradigmática dos conceitos dominantes e de suas relações lógicas, que controlam, inconsciente e incorrigivelmente, todo o nosso
conhecimento. O paradigma sob o qual vivemos é o da disjunção e da redução: e ele nos torna cegos, nesta era de globalidade e mundialização.
Não podemos produzir por decreto a reforma necessária, porque ela está inscrita no próprio curso da história; pensemos na passagem do paradigma ptolomaico ao copernicano. Tal reforma consiste em passar para um paradigma de religação, conjunção, implicação mútua e distinção. Ela pressupõeuma mudança no ensino, que por sua vez implica uma transformação do pensamento. É um círculo vicioso, do qual precisamos sair um dia... Um conhecimento pertinente é aquele que é capaz de
contextualizar, isto é, religar, globalizar. A ação adquire um novo sentido: fazer as apostas. Pascal – novamente ele – apostava em Deus. Nós apostamos em valores que não podem ser fundamentados.
Assim como o mundo, a ética se autoproduz.

Conhecer é também uma estratégia, que pode se modificar em relação ao programa inicial, que é flexível e leva em conta o que chamo de ecologia da ação. Sabe-se hoje que uma ação, lançada ao mundo, entra num turbilhão de interações e retroações, que podem se voltar contra a intenção inicial.

Por fim, uma última idéia: o sentimento de uma comunidade de destino profundo, que liga as idéias de solidariedade e fraternidade. O laço entre complexidade e solidariedade não é mecânico. Uma sociedade muito complexa proporciona muitas liberdades de jogo a seus indivíduos e grupos.
Permite-lhes ser criativos, algumas vezes delinqüentes. A complexidade tem, assim, seus riscos. Ao atingir o extremo da complexidade a sociedade se desintegra. Para impedi-lo, pode-se recorrer a medidas autoritárias; entretanto, supondo que desejemos o mínimo possível de coerção, o único
cimento que nos resta é a solidariedade vivida.

Nota – Este texto apareceu anteriormente na publicação de ensaios THOT, da Associação Palas
Athena, São Paulo (no. 67, 1998, pp. 12-19)

EDGAR MORIN é diretor emérito do Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris, e
presidente da Association pour la Pensée Complexe, também sediada em Paris.







domingo, 6 de novembro de 2011

A Era Axial...


Toda geração talvez acredite ter chegado a um ponto crítico da história, porém nossos problemas parecem particularmente difíceis e nosso futuro se mostra cada vez mais incerto. Muitas de nossas dificuldades mascaram uma crise espiritual mais profunda. Ao longo do século XX, assistimos à erupção de uma violência sem precedentes. Infelizmente, nossa capacidade de nos infligir danos e mutilações tem acompanhado nosso extraordinário progresso econômico e científico.
Parece nos faltar sabedoria para refrear nossa agressividade e mantê-la dentro de limites seguros. A explosão das primeiras bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki revelou a autodestruição e o niilismo existentes no bojo das brilhantes
ealizações de nossa cultura moderna. Corremos o risco de uma catástrofe ambiental porque já não vemos a terra como sagrada, mas a consideramos um simples "recurso". Se não houver uma revolução espiritual à altura de nosso gênio tecnológico, é improvável que salvemos nosso planeta. Uma educação puramente racional não será suficiente. Descobrimos, com pesar, que uma grande universidade pode funcionar perto de um campo de concentração. Auschwitz, Ruanda, Bósnia e a destruição do World Trade Center constituem sinistras demonstrações do que pode acontecer quando perdemos o sentido da sagrada inviolabilidade de cada ser humano.
A religião, que deveria nos ajudar a cultivar esse sentido, com freqüência parece refletir a violência e o desespero de nossa época. Praticamente todo dia nos deparamos com exemplos de terrorismo, ódio e intolerância de motivação religiosa.
Um número crescente de pessoas considera irrelevantes e inacreditáveis as doutrinas e práticas religiosas tradicionais e busca nas artes plásticas, na música, na literatura, na dança, no esporte ou nas drogas a experiência transcendente que parece necessária aos seres humanos. Todos ansiamos por momentos de êxtase, quando vivemos nossa humanidade com uma plenitude maior que a habitual e nos sentimos profundamente tocados por dentro e elevados acima de nós mesmos.
Somos criaturas à cata de sentido e, ao contrário de outros animais, facilmente nos desesperamos, se não conseguimos ver significado e valor em nossas vidas. Alguns procuram novas maneiras de ser religiosos. Desde a década de 1970 vem ocorrendo, em muitos lugares do mundo, um renascimento espiritual, e a devoção militante que muitas vezes chamamos de "fundamentalismo" é apenas uma manifestação de nossa busca pós-moderna de esclarecimento.
Em nossa atual conjuntura, creio que podemos encontrar inspiração no período que o filósofo alemão Karl Jaspers chamou de Era Axial, porque foi decisivo para o desenvolvimento espiritual do gênero humano. Entre aproximadamente 900 e 200 a.C., surgiram, em quatro regiões distintas, as grandes tradições mundiais que continuam alimentando a humanidade: confucionismo e daoísmo na China, hinduísmo e budismo na Índia, monoteísmo em Israel e racionalismo filosófico na Grécia. Essa foi a época de Buda, Sócrates, Confúcio e Jeremias, dos místicos das Upanishads, de Mêncio e Eurípides. Nesse período de intensa criatividade, gênios espirituais e filosóficos inauguraram um tipo inteiramente novo de experiência humana. Muitos trabalharam no anonimato, porém outros se tornaram luminares que ainda conseguem nos emocionar, porque nos mostram como uma criatura humana deveria ser. A Era Axial foi um dos períodos mais seminais de mudança intelectual, psicológica, filosófica e religiosa que a história
registra; não haveria nada comparável até a Grande Transformação Ocidental, que instituiu nossa modernidade científica e tecnológica.
Mas como os sábios da Era Axial, que viveram em circunstâncias tão diversas, podem falar a nossa atual condição? Por que haveríamos de buscar ajuda em Confúcio ou em Buda? Certamente um estudo desse período distante só pode ser um exercício de arqueologia espiritual, quando o que precisamos é criar uma fé mais inovadora que reflita as realidades de nosso próprio mundo. Contudo, nunca superamos de fato os achados da Era Axial. Em momentos de crise espiritual e social, homens e mulheres constantemente se voltaram para esse período à procura de orientação. Podem ter dado interpretações distintas às descobertas axiais, porém nunca as ultrapassaram. O judaísmo rabínico, o cristianismo e o islamismo, por exemplo, são rebentos tardios da Era Axial original. Como veremos no último capítulo, essas três tradições redescobriram a visão axial e a traduziram esplendidamente num idioma que falava direto às circunstâncias de seu tempo.
Os profetas, místicos, filósofos e poetas da Era Axial foram tão avançados e expuseram uma visão tão radical que gerações posteriores trataram de diluí-la.
Com isso, muitas vezes produziram exatamente o tipo de religiosidade que os reformadores axiais queriam eliminar. A meu ver, é o que tem acontecido no mundo moderno. Os sábios axiais deixaram uma importante mensagem para nossa época, porém seus achados serão surpreendentes - até chocantes - para muitos que se julgam religiosos hoje em dia. Com freqüência, presume-se, por exemplo, que ter fé é acreditar em certas proposições doutrinais. Na verdade, é comum chamar as pessoas religiosas de "crentes", como se acatar os artigos de fé fosse sua principal atividade. No entanto, a maioria dos filósofos axiais não tinha o menor interesse em doutrina ou metafísica. As crenças teológicas de um indivíduo eram totalmente indiferentes para um Buda. Alguns sábios se recusavam com firmeza até a discutir teologia, argumentando que era nocivo e desviava a atenção.
Outros diziam que era imaturo, irrealista e perverso procurar o tipo de certeza absoluta que muita gente espera encontrar na religião.
Todas as tradições que se desenvolveram na Era Axial empurraram as fronteiras da consciência humana e descobriram em seu bojo uma dimensão transcendente, mas não necessariamente a consideraram sobrenatural e, em geral, se recusaram
a discuti-la. Precisamente porque a experiência é inefável, a única atitude correta é um reverente silêncio. Por certo os sábios não tentaram impor aos outros sua visão dessa realidade suprema. Muito pelo contrário: acreditavam que, em matéria de fé, ninguém jamais deveria receber qualquer ensinamento. É essencial questionar tudo e testar todo ensinamento religioso empiricamente, através da própria experiência pessoal. De fato, como veremos, a insistência de um profeta ou de um filósofo em doutrinas obrigatórias em geral indica a perda de impulso da Era Axial. Se tivessem perguntado a Buda ou a Confúcio se acreditava em Deus, ele provavelmente teria estremecido e explicado - com grande delicadeza - que essa não era uma pergunta oportuna. Se tivessem perguntado a Amós ou a Ezequiel se era "monoteísta", se acreditava num Deus único, ele teria ficado igualmente perplexo. Monoteísmo não era a questão. Há pouquíssimas asserções inequívocas de monoteísmo na Bíblia, mas - curiosamente - a estridência de algumas dessas afirmações doutrinais contraria o espírito essencial da Era Axial.
O importante não é em que um indivíduo acredita, mas como ele se comporta.
Religião tem a ver com fazer coisas que produzem mudanças profundas no adepto. Antes da Era Axial, o ritual e o sacrifício de animais estavam no centro da busca religiosa. Vivenciava-se o divino em dramas sagrados que, como uma grande experiência teatral da atualidade, conduziam o espectador a outro nível de existência. Os sábios axiais mudaram esse quadro; ainda valorizavam o ritual, porém lhe conferiram um novo significado ético e punham a moralidade no âmago da vida espiritual. A única maneira de encontrar o que chamavam de
"Deus", "Nirvana", "Brahman" ou "Caminho" era levar uma vida compassiva. Na verdade, religião eracompaixão. Hoje em dia, muitas vezes achamos que, antes de adotar um estilo de vida religioso, temos de provar, para nossa própria satisfação, que "Deus", ou o "Absoluto", existe. É uma boa prática científica: estabelecer um princípio e só depois aplicá-lo. Mas os sábios axiais diriam que isso equivale a pôr o carro na frente dos bois. Primeiro, é preciso comprometer-se com a vida ética; depois, uma benevolência disciplinada e habitual - não uma convicção metafísica - forneceria indícios da transcendência que se procura.
Isso significa que se tem de estar pronto para mudar. Os sábios axiais não estavam interessados em dar a seus discípulos um pequeno enaltecimento edificante, após o qual eles poderiam retomar, com renovado vigor, suas vidas de sempre, centradas neles mesmos. Seu objetivo era criar uma espécie inteiramente distinta de ser humano. Todos pregavam uma espiritualidade de empatia e compaixão; insistiam na necessidade de abandonar o egocentrismo e a cobiça, a violência e a rudeza. Errado não era só matar um semelhante; não se devia nem pronunciar uma palavra áspera ou fazer um gesto irritado. Ademais, praticamente todos os sábios axiais entendem que nossa benevolência deve abranger o mundo inteiro, e não se restringir a nossa própria gente. Com efeito, a delimitação de horizontes e afinidades constitui mais uma indicação de que a Era Axial estava chegando ao fim. Cada tradição formulou sua própria versão da Regra de Ouro: não faças aos outros o que não farias a ti mesmo. Para os sábios axiais, religião é o respeito pelos sagrados direitos de todos os seres - e não a crença ortodoxa. Se agíssemos com bondade e generosidade para com o próximo, conseguiríamos salvar o mundo.
Temos de redescobrir o ethos axial. Em nossa aldeia global, não podemos mais nos dar ao luxo de uma visão estreita ou exclusivista. Precisamos aprender a viver e a nos conduzir tendo em mente que indivíduos de países distantes do nosso são tão importantes quanto nós. Os sábios da Era Axial não criaram sua ética da compaixão em circunstâncias idílicas. Essas tradições se desenvolveram em sociedades que, como a nossa, estavam, mais que nunca, despedaçadas pela violência e pela guerra; na verdade, o primeiro catalisador de mudança religiosa geralmente era uma honesta rejeição da agressividade que os sábios viam a seu redor. Quando se puseram a procurar as causas da violência na psique, os filósofos axiais penetraram em seu mundo interior e passaram a explorar um campo da experiência humana até então desconhecido.
O consenso da Era Axial é um eloqüente testemunho da unanimidade da busca espiritual do gênero humano. Todos os povos axiais descobriram que a ética da compaixão funciona. Todas as grandes tradições surgidas nessa época concordam quanto à suprema importância da caridade e da benevolência, e isso nos diz algo crucial sobre nossa humanidade. Descobrir que nossa fé se harmoniza tão profundamente com outras é uma experiência afirmativa. Sem nos afastar de nossa própria tradição, podemos, portanto, aprender com os outros a aprimorar nossa busca particular da empatia.
Para apreciar as realizações da Era Axial, temos de entender o que houve antes - ou seja, temos de conhecer a religião pré-axial da mais remota antigüidade. Nela encontramos certas características comuns que seriam fundamentais para a Era
Axial. A maioria das sociedades acreditava, por exemplo, num Deus Alto, comumente chamado de Deus Céu, por estar associado com o firmamento. Sendo algo inacessível, ele tendia a desvincular-se da consciência religiosa. Alguns diziam que ele "desapareceu"; outros, que fora violentamente deposto por uma geração mais jovem de divindades mais dinâmicas. Os indivíduos em geral sentiam o sagrado como uma presença imanente no mundo que os rodeava e dentro de si mesmos.
Alguns pensavam que deuses, homens, mulheres, animais, plantas e pedras partilhavam a mesma vida divina e estavam sujeitos a uma ordem cósmica responsável por toda a existência. Até os deuses tinham de obedecer a essa ordem e cooperavam com os homens para preservar as energias divinas do cosmo. Se tais energias não se renovassem, o mundo poderia mergulhar num vazio primordial.
O sacrifício de animais era uma prática religiosa universal na antigüidade.
Uma forma de reciclar as forças esgotadas que mantinham o mundo vivo. Havia uma firme convicção de que vida e morte, criatividade e destruição estavam inextricavelmente interligadas. As pessoas achavam que sobreviviam apenas porque outras criaturas davam a vida por elas, e, assim, reverenciavam a vítima animal por seu auto-sacrifício. Como não podia haver vida sem essa morte, alguns imaginavam que o mundo surgira em função de um sacrifício realizado no começo dos tempos. Outros contavam histórias de um deus criador que matara um dragão - símbolo comum do informe e indiferenciado - para arrancar a ordem do caos.
Quando encenavam esses eventos míticos em sua liturgia, os devotos se sentiam projetados no tempo sagrado. Com freqüência empreendiam um novo projeto, executando um ritual que representava a cosmogonia original para infundir força divina em sua frágil atividade mortal. Nada podia perdurar se não era "animado", ou provido de "alma".
A religião antiga dependia do que se denomina filosofia perene, porque está presente, de algum modo, na maioria das culturas pré-modernas. Cada pessoa, cada objeto, cada experiência aqui na terra era uma réplica - uma pálida sombra - de uma realidade existente no mundo divino. O mundo sagrado era, portanto, o protótipo da existência humana, e, por ser mais rico, mais forte e mais duradouro que qualquer coisa da terra, homens e mulheres queriam desesperadamente participar dele. A filosofia perene ainda é um fator crucial na vida de algumas tribos indígenas. Para os aborígines australianos, por exemplo, o reino sagrado do Tempo do Sonho é muito mais real que o mundo material. Vislumbres do Tempo do Sonho lhes ocorrem durante o sono ou em visões; o Tempo do Sonho é atemporal e "para sempre". Constitui um cenário estável para a vida cotidiana, constantemente enfraquecida pela morte, pelas vicissitudes, pela incessante mudança.
Quando vai caçar, o aborígine australiano imita de tal modo o procedimento do
Primeiro Caçador que se sente em completa união com ele, integrado a sua realidade mais poderosa. Depois, quando se afasta dessa riqueza primordial, teme que o reino do tempo o absorva e o reduza a nada, juntamente com tudo que ele faz.
Essa era também a experiência dos povos da antigüidade. Só existiam de verdade quando imitavam os deuses em rituais e abandonavam a solitária e frágil individualidade de sua vida secular. Só cumpriam sua humanidade quando deixavam de ser apenas eles mesmos e repetiam os gestos de outros.
Nós, seres humanos, somos profundamente artificiais. Vivemos em luta para aprimorar nossa natureza e aproximar-nos de um ideal. Mesmo hoje em dia, quando abandonamos a filosofia perene, há os que se curvam servilmente aos ditames da moda e até violentam o rosto e o corpo para reproduzir o padrão de beleza vigente. O culto da celebridade mostra que ainda reverenciamos modelos que sintetizam a "super-humanidade". Há pessoas que se desdobram para ver seus ídolos e sentem uma exaltação extática por estar perto deles. Copiam seu traje e sua conduta. Parece que temos uma propensão natural para o arquetípico e o paradigmático.
Os sábios axiais chegaram a uma versão mais autêntica dessa espiritualidade e ensinaram a buscar no próprio íntimo o eu ideal e arquetípico.
A Era Axial não é perfeita. Uma de suas maiores falhas é a indiferença pelas mulheres. Quase todas essas espiritualidades se desenvolveram num ambiente urbano, dominado pelo poderio militar e pela atividade mercantil agressiva, em que as mulheres tendiam a perder o status que detinham numa economia mais rural. Não existem sábias axiais, e, mesmo quando recebiam permissão para desempenhar um papel ativo na nova fé, as mulheres costumavam ser postas de lado. Não podemos dizer que os sábios axiais as odiavam; na maior parte do tempo, eles simplesmente não tomavam conhecimento de sua existência.
Quando falavam sobre o "grande homem", ou o "homem iluminado", não se referiam a "homens e mulheres" - apesar de que, se questionados, a maioria talvez admitisse que as mulheres também são capazes dessa liberação.
Descobri que, justamente por ser a questão das mulheres tão irrelevante para a Era Axial, qualquer discussão continuada desse tema acaba sendo maçante. Esse assunto me pareceu incômodo, todas as vezes que tentei abordá-lo. Creio que merece um estudo específico. Os sábios axiais não eram rematados misóginos, como alguns padres da Igreja, por exemplo. Eram homens de sua época e estavam tão preocupados com o comportamento agressivo de seu próprio sexo que raramente pensavam duas vezes nas mulheres. Não podemos seguir os reformadores axiais com servilidade; na verdade, tal atitude constituiria uma profunda violação ao espírito da Era Axial, segundo o qual esse tipo de conformismo nos aprisiona numa versão inferior e imatura de nós mesmos. O que podemos fazer é estender a todos, inclusive ao sexo feminino, o ideal axial de preocupação universal. Ao tentar recriar a visão axial, temos de levar em conta os melhores achados da modernidade.
Os povos axiais não tiveram uma evolução homogênea. Cada qual se desenvolveu em seu próprio ritmo. Às vezes atinaram com algo realmente digno da Era
Axial, porém recuaram. Os indianos sempre estiveram na vanguarda do progresso axial. Em Israel, profetas, sacerdotes e historiadores se acercaram do ideal esporadicamente, a intervalos, até ser exilados na Babilônia, no século VI, e viver um breve e intenso período de extraordinária criatividade. Na China houve um progresso lento e cumulativo, até Confúcio desenvolver a primeira espiritualidade axial plena, no final do século VI. Quanto aos gregos, desde o início tomaram um rumo totalmente distinto do dos outros povos.
Jaspers via na Era Axial uma contemporaneidade maior do que a existente.
Achava que Buda, Laozi, Confúcio, Mozi e Zoroastro, por exemplo, eram mais ou menos coetâneos. Estudiosos modernos revisaram essa datação. Agora sabemos que Zoroastro não viveu no século VI, e sim muito antes. É muito difícil datar com precisão alguns desses movimentos, sobretudo na Índia, onde havia pouco interesse em história e não se fez nenhuma tentativa de manter registros cronológicos precisos. Atualmente a maioria dos indólogos concorda, por exemplo, que Buda nasceu um século depois do que se pensava. E Laozi, o sábio daoísta, não é especulativas e é provável que nunca tenhamos certeza sobre elas.
No entanto, apesar dessas dificuldades, o desenvolvimento geral da Era Axial nos fornece alguns dados sobre a evolução espiritual desse importante ideal.
Seguiremos esse processo cronologicamente, mapeando o progresso dos quatro povos axiais lado a lado e observando a trajetória da nova visão, que pouco a pouco se arraigou, teve um crescimento e se esvaeceu no final do século III. Mas a história não acabou aí. Os pioneiros da Era Axial lançaram os alicerces sobre os quais outros puderam construir. Cada geração tentaria adaptar esses achados originais a suas próprias e peculiares circunstâncias, e essa deve ser nossa tarefa hoje em dia.
Karen Armstrong
Escritora